Silêncio (Silence, 2016) | Crítica

22:24:00


Matheus R. B. Hentschke


"Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?" Perguntaram os discípulos de Jesus sobre um homem cego que avistavam, a que Ele respondeu: "Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus." A passagem bíblica retirada de João cap. 9, versículos 1-3, melhor representa a aura de fé e provação que permeia a obra de Martin Scorsese, Silêncio. O diretor que consegue permutar com naturalidade entre gêneros, indo de filmes de máfia, como Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), a filmes infantis, como A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), faz de seu mais novo trabalho um incrível estudo de religiosidade e de choques culturais com a mesma destreza apresentada em outros de seus melhores trabalhos.

O roteiro adaptado do livro de Shusaku Endo, que concede o título à obra cinematográfica, traz a história, no século XVII, de dois padres jesuítas - Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver) - que precisam ir ao Japão buscar seu mentor, Ferreira (Liam Neeson), acusado de ter cometido apostasia, ou seja, de ter renunciado à fé católica em um país em que os cristãos eram perseguidos. Ao acompanhar Rodrigues e Garupe em sua chegada ao Japão, em um vilarejo de "kirishitans", como se chamavam os cristãos no país, é possível compreender um dos motivos para o título Silêncio, uma vez que a impossibilidade de manifestar e professar sua fé livremente, visto naqueles camponeses miseráveis, que mal compreendiam as noções de religião e "viviam como animais", como observado por Rodrigues, cercados e subjugados por autoridades que exigiam o respeito à tradição budista, traz uma das possíveis interpretações para um silêncio imposto, limitador, que se encontra de maneira quase onipresente ao longo de toda a narrativa. 






A trilha sonora econômica e as sequências que valorizam os ambientes inóspitos, fazem da obra de Scorsese uma película densa, bastante intensa e comprometida com seu intuito - saiba mais. Os sermões dados pelos padres à noite, a fim de não serem descobertos, a pessoas que mal os entendiam tanto pela questão da linguagem, quanto pela falta de um mínimo de instrução, ilustram o caráter opressivo de um lugar em que o perigo está sempre à espreita daqueles homens de fé. Entretanto, o que traz a grandiloquência, notória nos trabalhos de Scorsese, são as camadas e as alegorias presentes na história por ele contada. Como olhar para aqueles múltiplos personagens e aquelas inúmeras situações e não relacioná-los à inúmeros contextos bíblicos: a devoção irrestrita de Mokichi (Shin'ya Tsukamoto), remetendo ao fiel apóstolo João; a constante negação e renúncia de sua fé, mesmo em momentos impensáveis, de Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), podendo traçar um paralelo com a tripla negação de Pedro, apóstolo bíblico, em relação à Jesus; a luta para não cair em tentação por parte de Rodrigues, em circunstâncias análogas as de Jesus e de seus 40 dias no deserto.

São tantos paralelos possíveis a serem traçados, que por si só já seriam suficientes para tornar Silêncio uma obra múltipla e ampla em seu escopo de alegorias, porém há muito mais. O protagonista Rodrigues, interpretado por um Andrew Garfield merecedor de maior consideração pela Academia no Oscar 2017 (confira os vencedores), devido a uma atuação soberba, com camadas e nuances em uma longa jornada de evolução; traz toda a batalha interna de um homem devoto, tratado como uma espécie de um messias naquela terra de seres miseráveis, que tem de enfrentar os piores paradigmas, no intuito de perseverar em suas crenças. 


Toda a dúvida, toda a superação por ele passadas são sentidas por um espectador que muito antes já desistiu de perseverar em um caminho tão espinhoso quanto o trilhado por Rodrigues, mas que se mantém fixo, em sua atenção, necessitando saber até aonde vai a capacidade de crer em seu deus por parte do padre jesuíta. É nesse ponto, que há mais uma fonte de análise para o nome Silêncio: um homem que clama a Deus por auxílio e um ser divino que parece estar alheio às agruras passadas pelo seu discípulo, como em uma fala por ele proferida: "Será que eu estou rezando apenas para o silêncio?". O clamor de Rodrigues por uma resposta, por um sinal daquele Deus que havia lhe guiado naquela missão quase irrealizável, e o silêncio vindo daquele Pai, que parecia mais distante do que nunca naquela terra, fazem da obra de Scorsese uma fonte rica de ilustrações religiosas e de temáticas de queda e ascensão, que são tão presentes na filmografia do diretor e que remetem, nesse caso, a uma aura de Ingmar Bergman e seu O Sétimo Selo (The Seventh Seal, 1957). 

É preciso dizer que além de Garfield, há a presença de Adam Driver, como o padre Garupe, e Liam Neeson, como o padre Ferreira, ambos com aparições restritas, mas que funcionam e dão peso as sequências em que aparecem, devido a forte presença de cena que tanto Driver quanto Neeson possuem, seja pela voz seja pelas expressões marcantes. 

Verdade seja dita, Martin Scorsese é incapaz de errar na realização de qualquer obra cinematográfica em que ele dirija, tornando Silêncio um dos grandes esnobados do Oscar 2017, possivelmente, por causa da temática polêmica, visto que a violência e o peso com que a obra é levada possivelmente possa ter gerado receios à Academia que ainda luta para deixar de ser tão retrógrada - saiba mais. Mesmo sem o reconhecimento geral, uma obra-prima que merecia inúmeras indicações e prêmios nas principais cerimônias do cinema.

Nota: 9,0 / 10 


Trailer Oficial:



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